Eu sou não-monogâmica?

Um relato sobre um relacionamento conturbado e uma autorreflexão para me entender melhor

Alice Martins
11 min readMay 9, 2023
Preciso de café

Esse texto é um relato de como foi meu último relacionamento e uma autorreflexão, escrita por mim e para mim. Não vou expor ninguém e nem mandar recados indiretos por aqui, até porque duvido muito que as pessoas das quais falarei vão sequer ler isso.

Eu preciso entender melhor o que aconteceu, dizer para mim mesma que não sou culpada de nada, que dei meu melhor e fui a melhor namorada possível. Tenho que saber como vou me relacionar com outras pessoas daqui pra frente.

Após sair do meu primeiro relacionamento não-monogâmico, um dos piores da minha vida, não sei se eu vou querer correr o risco de passar pela mesma experiência de novo. Por outro lado, a monogamia já não parece mais confortável para mim, não por eu ter necessidade de me relacionar com várias pessoas em simultâneo, mas porque minha consciência social em relação a isso evoluiu. Eu sei que a monogamia é usada como ferramenta de opressão e reforça a ideia de posse sobre o parceiro, em especial do homem sobre a mulher, e que a não-monogamia é uma forma subversiva de relacionamento que desafia normas sociais, perfeita para minorias como eu e blá blá blá. É por essa razão que surge essa dúvida.

Vamos direto ao ponto: afinal, por que a não-monogamia foi ruim para mim? É difícil dizer se tive a experiência de um relacionamento não-monogâmico de fato, pois eu não me relacionei com mais de uma pessoa em simultâneo, e na minha única relação o que me foi prometido é que não haveria hierarquização ou comparação, mas adivinha o que eu ganhei? Hierarquização e comparação. Algo que pude ver de perto, já que eu tinha contato com as outras pessoas que mi ex-namorade se relacionava.

Durante a maior parte do relacionamento eu me senti preterida em relação aos outres namorades de mi ex-parceire, de diversas formas. Na diferença de tratamento, onde elu começou a preferir passar tempo com os outros, começou a me ignorar, não ria mais das minhas piadas, não demonstrava o amor da mesma forma e nem na mesma intensidade, e adiava o dia que a gente iria se ver.

Na falta de interesse que mi ex-namorade tinha por mim e pelas coisas que eu gosto, onde quase tudo que eu apresentava à elu era recebido com tom de crítica ou desdém: o fato de eu morar em apartamento, minha cidade, meu estado, as comidas e bebidas que eu gosto, meus hobbies, meus filmes favoritos, jogos, animes, músicas, etc. Eu tinha muitos interesses em comum com outres namorades delu, mas os mesmos interesses eram tratados de formas diferentes nas relações, enquanto eu recebia críticas, outres recebiam incentivo.

Houve uma situação em particular que me machucou bastante, que foi quando mi ex-parceire decidiu mestrar RPG para mim. Como eu confiava nelu como narradore, eu decidi me expressar profundamente na minha personagem, abordando questões da minha transgeneridade. Quando apresentei minha personagem para elu, a resposta que recebi foi: “É. Ta genérico, mas ta ok”. Depois disso, elu começou a descontar toda a frustração que tinha com a mesa em mim, fez parecer que eu e os outros jogadores não eram dignos da narração delu, senti minha confiança traída.

Eu não faço personagens de RPG para agradar o narrador, eu jogo com a personagem que eu quero jogar. Eu não jogo RPG para fazer algo que ninguém nunca fez antes, para inovar, eu jogo para me divertir. Claro que eu não pego personagem de um gerador aleatório, mas eu não deixo de usar alguns clichês, porque clichê não é necessariamente ruim, eu gosto de muitos inclusive. Se você espera um backstory elaborado, comunique isso na sessão zero, não espere que os jogadores leiam sua mente e atinjam suas expectativas injustas.

Isso é só um exemplo, diversas vezes me senti menosprezada, perdi o tesão que tinha em muitos hobbies porque me sentia censurada. Eu cheguei a parar de tomar café! Café! Eu amo café! Tudo porque eu fui ridicularizada publicamente por elu por gostar de fazer café sofisticado. A desaprovação de alguém que você ama e admira dói muito. Mi ex-parceire me rejeitava, e eu comecei a me rejeitar também.

Nas relações sexuais, mi ex-namorade perdeu completamente a atração por mim, mas não por outres namorades delu. Elu disse que a sexualidade delu era fluída, e que a atração por mulheres ia e vinha (o que eu não sei até onde é verdade, pois elu ainda trocava cantadas com teor sexual com outras mulheres, o problema parecia ser eu), o que eu entendi e levaria numa boa, se não fosse uma situação engatilhante para mim, que me lembrava de como eu era preterida de todas as formas possíveis. Por muito tempo eu fiquei confusa, porque elu era uma pessoa ace, eu comecei a namorá-lu sabendo disso, eu não queria e nem deveria exigir nada sexual delu, sexo não é algo essencial para mim em um relacionamento, então por que eu ficava tão mal com essa situação? Apesar de as ações não condizerem, quando mi ex-parceire queria me passar segurança, funcionava, mesmo que temporariamente, então eu invalidei meus sentimentos, por medo de ofender elu ou de causar instabilidade na relação, o que fazia parecer que sexo era importante para mim, e por muito tempo eu me culpei por isso, tentando convencer elu e a mim mesma que era só uma questão de vaidade.

Por que tudo isso aconteceu? Afinal, no começo do relacionamento estava tudo bem, quando as coisas começaram a desandar? O que eu acho é que, basicamente, mi ex-namorade se relacionava com uma idealização que elu fez de mim, e não comigo de fato. O que é normal, todo relacionamento começa assim, mas quando meu véu caiu, e elu viu quem eu realmente era, uma pessoa menos legal, menos inteligente, menos atraente, elu não me aceitou, e tentou levantar meu véu de volta. Mi ex-parceire começou a rejeitar tudo que partia de mim, continuou se relacionando com a idealização, e quando eu não atingia as expectativas irrealistas delu, vinha a frustração, e segundo elu, minha presença passou a ser desconfortável.

Eu senti até meu gênero sendo rejeitado, em uma conversa que nós tivemos onde minha identidade foi invalidada, mi ex-namorade chegou a falar que gostaria que eu fosse mais agressiva, incisiva, que eu contestasse mais, respondesse, brigasse, quase exigindo masculinidade de mim… Eu perdoei elu por essa conversa, e quando contei sobre isso para mi psicologue, elu disse que não perdoaria, hoje eu concordo.

Bom, e quais eram as justificativas? Por que eu estava sendo preterida, segundo elu? Ai que entra o gaslighting e a comparação. Por que mi ex-parceire não se interessava pelas coisas que eu gosto? Porque supostamente eu não me interessava pelas coisas delu também, e eu via tudo como uma troca, elu vê um filme que eu gosto, eu vejo um filme que elu gosta. O que é mentira, eu me interessava e muito pelas coisas delu, e a maioria das coisas que fizemos juntes foram coisas que mi ex-namorade queria, nunca vi a relação como uma troca. “Achei que você não tinha gostado do filme que te mostrei porque você não chorou no final, e mi outres namorades sim”; “Achei que você não tinha gostado da minha cantora favorita porque você não ficou completamente viciada nela, que nem mi outres namorades”. Falei que gostei do filme, falei o porquê gostei, pedi para voltar em cenas que havia gostado. Eu gostei da cantora favorita delu, eu ouvia pelo menos uma vez por semana, cantava trechos das músicas dela em call ocasionalmente, eu só não ouvia o tempo todo. Eu sou neurodivergente, a forma que eu expresso as coisas é diferente, porém é sincero, achei que elu, que também é, entenderia isso. “Mas nessas três vezes que te chamei para ver essa série, você não quis”. De novo: sou neurodivergente, eu preciso me isolar, e todas as dezenas de vezes que eu concordei em ir assistir algo com elu?

Mi ex-namorade conseguia fazer parecer que tudo era culpa minha, de uma forma bem sorrateira. Nunca dizia diretamente “foi culpa sua”, elu se justificava com coisas que eu tinha feito, sendo verdade ou não, o que me fazia sentir culpada da mesma forma. Eu já lidei com gaslighting antes, mas não de uma forma tão sútil. Eu senti culpa por coisas que nunca fiz, por não conseguir ler a mente delu, por ser neurodivergente, por ser mulher, por ter uma mãe doente, por não superar as expectativas impostas a mim… Até a questão de se relacionar com uma idealização, elu me acusou disso diversas vezes. Eu amava mi ex-parceire por quem elu realmente era, porém, o amor delu não era mais direcionado a mim, e sim a idealização, então aparentemente sentir falta desse amor é idealizar na visão delu.

Como mi ex-namorade já não me amava mais, e sim uma idealização, elu só continuou se relacionando comigo por pena. Pena pela situação que eu me encontrava, com uma mãe doente, problemas familiares, dificuldade na faculdade, disfórica, depressiva, com ideações suicidas… E isso eu não acho, tenho certeza, tanto que quando terminamos, elu disse que a relação não trazia mais nada de bom, e tentar me ajudar com minhas questões estava ê sugando completamente (coisa que eu nunca pedi), e que muitas dos meus problemas lembravam ume antigue elu. Óbvio, se mi namorade está se relacionando comigo sem sentimento, só para tentar me ajudar, claro que vai ser desgastante.

Por sorte, eu tive um referencial muito bom próximo de mim que me fez enxergar isso: meu irmão e minha cunhada. Ela está aqui, apoiando eu e meu irmão nesse momento tão difícil, já que perdemos nossa mãe. Claro que deve ser cansativo, principalmente porque ela também perdeu a mãe há três meses, mas a relação deles não se resume a isso, eles ainda gostam de passar o tempo um com o outro, eles ainda se amam, mesmo o problema do meu irmão lembrando o passado dela, minha cunhada ainda está aqui.

Quando terminamos, foi feio. Começou com eu tentando comunicar uma situação que me incomodou, escalonou, e de repente elu estava me bombardeando de mensagens de como elu estava se sentindo com a relação, como minha presença passou a ser desconfortável, como a relação não trazia nada de bom, como estava cogitando o término, e sempre me culpando sutilmente: eram meus problemas, era a minha resistência às ajudas delu (o que é mentira), era como no fim das contas eu sou muito diferente delu… Senti como se estivesse assistindo elu partir. Eu estava sob efeito do antidepressivo e regulador de humor, algo novo para mim, e aquela semana foi uma das piores da minha vida. Eu estava hipersensibilizada e medicada, me senti sufocada com tudo aquilo, atordoada, não consegui responder na hora. Devido ao medicamento, parece que meu corpo desenvolveu uma reação nova a situações que causariam imenso estresse, ansiedade ou tristeza: muito sono. Tanto que quando recebi a notícia que minha mãe faleceu, eu simplesmente fui dormir, e não diferiu nessa situação. Quando elu terminou de falar, eu simplesmente respondi “Se a relação não traz nada de bom, então acho melhor terminarmos mesmo” e fui dormir, porque eu simplesmente queria livrá-lu do fardo que elu fez nosso relacionamento parecer o mais rápido possível. Eu priorizei elu em detrimento a mim, coisa que fiz muito para tentar atingir expectativas.

Quando acordei, ainda hipersensibilizada, atordoada, e confusa, tentei responder propriamente. Discutimos, e eu que já estava confusa, com dificuldade de me expressar, era constantemente interrompida por qualquer coisa que eu dizia por um “quê?”, “wtf?” ou um print de algo que eu tinha dito, e eu tinha que me explicar a cada frase que eu dizia. Não me senti ouvida, elu só queria provar estar certe, estava tentando invalidar o que eu sentia, e era isso.

Conversamos melhor depois, nos entendemos e concordamos em ser amigues. Nós deveríamos ter ficado um tempo afastades, tudo era muito recente, eu ainda amava elu, e desde o momento que terminamos, mi ex-parceire decidiu gritar pros quatro cantos do mundo como elu amava seu outro namorado que sobrou, postando todas as demonstrações de amor possíveis. Mi ex-namorade nunca fez isso, nem por mim, nem por aquele namorado. Eu sei que elu não fez isso para me machucar, mas elu também não pensou em como eu me sentiria. Basicamente depois que terminamos, havia acabado a preocupação de esconder a hierarquização que acontecia, e elu finalmente pôde demonstrar tudo o que queria há muito tempo.

Eu me senti horrível, a pessoa mais indesejável do mundo, me senti amada pela metade. Já era engatilhante para mim, e o fato de se tratar de um homem cis piorava tudo, pois a minha vida toda fui trocada por homens. Ficava me comparando, já que elu fazia o mesmo, me perguntava o que o outro namorado tinha que eu não tinha. Ele era mais legal? Mais divertido? Mais engraçado? Mais bonito? Mais gostoso? Mais inteligente? Era a forma de demonstrar interesse? Era o fato dele ser homem? Era por que ele tinha um PC melhor que o meu, então ele conseguia jogar jogos com elu que eu não conseguia? Ele é tão diferente delu quanto eu, não conseguia entender. Eu não sei, nunca vou saber, e já não me interessa mais.

Comuniquei como me sentia para mi ex-namorade, e claro que isso abalou a amizade, mas consegui lidar melhor com isso. Minha mãe faleceu, me senti mais solitária do que nunca, queria a companhia delu, de qualquer um, na verdade. Pouco tempo depois elu entrou em uma situação de extrema vulnerabilidade, fiquei muito preocupada e tentei ajudar de prontidão, mas acabei exagerando.

Naquele ponto eu queria ser uma amiga íntima delu, e para isso eu ainda estava tentando cumprir as expectativas que elu havia colocado em mim no antigo relacionamento, tentando demonstrar tudo com mais intensidade: meu interesse, minha preocupação, meu carinho… Porém, acabou sendo demais. Não respeitei o espaço delu, e pareceu que eu queria voltar a namorar, ainda mais com o que eu havia comunicado anteriormente, mesmo conseguindo lidar melhor. A neurodivergência não ajudou, me expressei muito mal. Resumindo: a amizade não durou muito tempo.

Mi ex-parceire se afastou completamente de mim e me bloqueou em tudo quanto é canto, não antes de mandar um monte de áudio esbravejando, cagando na minha cabeça, apontando o dedo na minha cara, dizendo que não era uma clínica de reabilitação, que não era minha cura, sendo que eu nunca cheguei perto de pedir algo nesse sentido. Na hora senti que merecia a forma que elu me tratou, senti que estraguei tudo, me senti o pior lixo do mundo, me perguntei o que diabos tinha de errado comigo.

Agora, Alice do passado, eu te respondo o que diabos tem de errado com você: nada. Você só entrou em um relacionamento tóxico, fadado ao fracasso, pois existiam expectativas irreais em cima de ti, e você não poderia ter feito nada a respeito. Elu não quis se relacionar contigo, e sim com uma ideia que tinha de ti. Uma ideia que não é melhor, nem pior de quem você é, apenas que não é você. Não adianta ficar arrependida, você deu seu melhor, você foi genuína. O que você queria? Ter fingido ser outra pessoa? Você não se sentiria amada da mesma forma, seria até pior.

Se alguém leu isso até aqui, eu imagino o que você deve estar pensando, então preciso fazer um disclaimer: o relacionamento não foi só desgraças, teve muitos momentos bons, só não vale a pena ficar lembrando deles agora, eu preciso seguir com minha vida. Eu não odeio mi ex-namorade, e elu não é um monstro. A maior prova disso é que elu ainda tem uma relação aparentemente boa e saudável com o namorado delu. Eu só não tive sorte.

Com isso eu concluo que minha experiência ruim não se deve ao fato de ter sido uma relação não-monogâmica, até porque uma experiência assim aconteceria facilmente na monogamia. Tudo que eu preciso é de uma pessoa que eu confie plenamente, que não hierarquize ou compare as relações, que faça eu me sentir amada por quem eu sou de verdade, que proporcione um relacionamento que me contemple. Eu mereço isso.

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Alice Martins

Travesti, demigirl, autista, pansexual, escritora e futura psicóloga.